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Javier Milei e o internacionalismo reacionário - Opera Mundi

operamundi.uol.com.br Javier Milei e o internacionalismo reacionário - Opera Mundi

O presidente argentino foi o personagem principal da cúpula "Viva 24", organizada em 18 e 19 de maio pelo partido extremista espanhol VOX na arena Palacio de

Javier Milei e o internacionalismo reacionário - Opera Mundi

O presidente argentino foi o personagem principal da cúpula “Viva 24”, organizada em 18 e 19 de maio pelo partido extremista espanhol VOX na arena Palacio de Vistalegre, em Madri, onde vários expoentes da extrema direita global se reuniram. Nesse ambiente, Javier Milei transitava como um peixe no Atlântico, capaz de se movimentar entre as diferentes correntes e famílias de uma internacional reacionária que está mais ousada e anti-direitos que nunca. Ele estava tão à vontade que confessou ter preferência pelo trabalho de propagandista em detrimento de sua tarefa como chefe de Estado.

O encontro serviu como o lançamento da campanha para as eleições do Parlamento Europeu que ocorreram entre os dias 6 e 9 de junho. E essa demonstração de força antecipou o que as pesquisas já previam: um resultado favorável à extrema direita, o que poderia perturbar o equilíbrio político da unidade entre os países europeus em um contexto marcado pela guerra.

Há sete grupos de afinidade política transnacionais no Parlamento Europeu, mas os dominantes são o Partido Popular Europeu e a Aliança Progressista de Socialistas e Democratas. Visto da Espanha: o primeiro é o PP espanhol, um aliado internacional do macrismo argentino e o principal opositor do PSOE (partido que governa a Espanha atualmente). Ademais, o VOX é membro da coalizão Conservadores e Reformistas Europeus (ECR), uma aliança claramente reacionária, mas que não a única, pois ainda existe o grupo Identidade e Democracia (ID) que está ainda mais à direita. Então, a cúpula “Viva 24” marcou a confluência entre essas duas coalizões. Os anfitriões fazem parte do ECR, assim como a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni, o presidente húngaro Viktor Orbán e o ex-presidente polonês Mateusz Morawiecki. A eles se juntaram a francesa Marine Le Pen e o português André Ventura para o ID.

Milei foi o convidado mais badalado do evento, mas não o único. O ministro de Assuntos da Diáspora de Israel, Amichai Chikli, também participou. E dois norte-americanos com papéis importantes na maquinaria política trumpista: Matt Schlapp, operador da Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC), e Roger Severino, vice-presidente da Fundação Patrimônio.

Quanto aos líderes sul-americanos, além do argentino, também viajaram o candidato presidencial da extrema direita chilena, José Antonio Kast, e assim como o mexicano Eduardo Verástegui, que tem a religião e a luta contra o aborto como os dois pilares de seu discurso político. Dois países chave na constelação reacionária da América Latina estavam visivelmente ausentes: o bolsonarismo do Brasil e o grupo de Nayib Bukele, de El Salvador, que já havia participado da CPAC, organizada por norte-americano Steve Bannon, em no último mês de abril.

Polarização ou diplomacia

O profeta argentino viajou a Madri para alertar o Ocidente sobre os riscos da justiça social. De um lado, o Ocidente, propriedade, liberdade, vida e família. Do outro, o socialismo, justiça social, sindicatos, feministas e a questão ambiental. Em termos concretos, essa cruzada transformou-se em insólita crise diplomática com o presidente espanhol Pedro Sánchez.

Vários analistas sugeriram que a polarização entre os chefes de Estado argentino e espanhol é politicamente benéfica para o Vox e PSOE: na corrida para as eleições de junho, essa contenda fortaleceu tanto a extrema direita quanto o socialismo, em detrimento do PP. Embora Milei tenha ganhado um lugar central nas manchetes como um antagonista internacional contra o socialismo, a ação de Sánchez foi similar à estratégia peronista de 2023: confrontar com o outro extremo para limitar as chances daqueles que parecem ser a principal ameaça da oposição. Talvez Sánchez tenha sucesso nesse tipo de manobra, já que o socialista demonstrou grande audácia tática. Mas, do ponto de vista estratégico e considerando a experiência argentina, é possível que ele esteja brincando com fogo.

Culto à desigualdade

A delegação argentina estava bem equipada. O grupo oficial incluía, como quase sempre, a irmã Karina, bem como a chanceler Diana Mondino e o agora ex-chefe de gabinete Nicolás Posse, dois ministros que hoje não são muito bem vistos pela Casa Rosada; o ministro da Justiça Mariano Cúneo Libarona; o secretário para assuntos do Vaticano, Francisco Sánchez, juntamente com seu principal assessor, Tomás Randle; os deputados pró-vida Santiago Santurio e Nicolás Mayoraz; e a esposa do magnata Alejandro Bulgheroni, Bettina Guardia, nomeada em março de 2024 como “embaixadora da Marca País”.

Em Madri, a turnê contou com a presença do influenciador Agustín Laje, Sofía Dutallaz, vice-presidente do “Los Halcones”, um grupo de jovens que apoia o partido PRO (de direita), e o diretor do Instituto Superior de Sociologia, Economia e Política (ISSEP), Santiago Muzio, argentino residente na Espanha. O ISSEP é uma escola de formação política dos quadros do VOX.

Houve uma ausência importante, que passou despercebida: Victoria Villarruel, vice-presidente argentina e habitual interlocutora da VOX, hoje em evidente tensão com o líder de seu partido. Como se sabe, a convivência entre os três setores que compõem o campo governista da Argentina não é fácil. Tanto nas desventuras internacionais, como embates em escala local fica evidente que esses três setores expressam tradições de direita e projetos de poder cuja compatibilidade ainda está por ser vista. Portanto, na medida em que não atingirem seus objetivos políticos, poderá surgir um conflito interno.

Depois do presidente, a figura mais proeminente da delegação argentina era o secretário de Assuntos para o Vaticano, que participou do painel “Vozes da liberdade contra a esquerda criminosa” e fez um discurso contra o divórcio, aborto e o casamento igualitário. Até mesmo a mídia tradicionalmente à direita descreveu esse discurso como “polêmico”. Ele dividiu o painel com seu compatriota Santurio, que propôs uma teoria estranha: atacar a propriedade privada é atacar diretamente o núcleo da família, que permite a existência de governos autoritários.

Esse setor da extrema direita argentina, que representa a agenda mais tradicionalista, também participou de algumas reuniões e eventos paralelos: Com o Centro de Direitos Fundamentais ou Alapjogokért Központ, organização subsidiada pelo governo húngaro que organizou a terceira edição da CPAC e contou com presença de Orbán e Trump, que fez uma participação à distância. Esse mesmo evento teve ainda a participação da Rede Política pelos Valores (Political Network for Values), organização presidida pelo chileno Kast, e que promove a articulação de políticos conservadores da América Latina, Estados Unidos e Europa; assim como os evangélicos da Convenção Europeia do Parlamento e da Fé 2024.

Milei e a Iberosfera

Talvez o aspecto mais relevante do que aconteceu em Madri seja o envolvimento de Milei no projeto “Iberosfera”, um projeto de unidade da extrema direita proposto pelo VOX com o objetivo de destacar a zona de influência da cultura hispânica sobre a América Latina.

Desde 2020, quando o líder do VOX, Santiago Abascal, falou pela primeira vez sobre a Iberosfera, ele deixa explícito que a unidade da extrema direita é projetada na identidade cultural formada a partir de raízes coloniais, que tem elementos como a língua e a fé cristã. A estratégia também inclui Portugal, representado pelo partido Chega, assim como o Brasil, embora com menos destaque.

Para sua promoção, o VOX tem três instrumentos: o think tank Fundação de Dissidência; a mídia digital La Gaceta de la Iberosfera; e a “Carta de Madri”, o manifesto fundador do Fórum de Madri, uma aliança internacional de conservadores e simpatizantes da extrema direita da América Latina, Estados Unidos e Europa.

A Iberosfera é uma plataforma de ação coordenada entre partidos e políticos de ambos os lados do Atlântico, que revive o ideal colonial e a influência econômica espanhola na região. Assim, o VOX se posiciona como um ator relevante em nível internacional, com um diferencial em relação aos Estados Unidos e sua proposta de liderar a América Latina. O partido projeta Madri como uma espécie de capital sub-imperial, que viria a substituir o papel de Miami, uma cidade que abriga muitos dissidentes políticos e membros de grupos ultraconservadores da região latino-americana.

No entanto, a liderança dos EUA não parece estar em questão, já que o verdadeiro foco político está centrado no “atlantismo”, uma doutrina política que advoga uma intensa cooperação entre os Estados Unidos, Canadá e os países da Europa. E essa estratégia é liderada por Washington contra a ameaça de uma hegemonia não-ocidental, tendo a China e a Rússia como principais inimigos.

Para Milei, no entanto, o projeto da Iberosfera é uma oportunidade de intensificar sua guerra cultural. Qualquer plataforma acrescenta uma nova peça digital viral. Ele voltou de sua viagem a Madri convencido de que sua liderança já tem estatura global. Embora ele se veja como o maior propagador da liberdade do mundo, a revista Time, que estampou Milei em sua capa recentemente, observou que “seus ataques à imprensa e suas ameaças contra ‘traidores’ políticos está ganhando tons autoritários”.

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